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Artigo – O admirável mundo novo da inteligência artificial
25 DE JUNHO DE 2025
A inteligência artificial já está entre nós, registradores, notários, juízes, promotores, advogados, alunos e professores, pais e filhos, pets e bebês reborn. A IA vai se insinuando na diuturnidade das atividades notariais e registrais, enraizando-se em processos e rotinas internas e já nos perguntamos: como pudemos viver sem ela até os dias de hoje?
O desafio posto aos cartórios é o seguinte: como utilizar a IA como ferramenta útil, sem que nos convertamos em meros pacientes no processo? Como evitar que progressivamente degrademos nossas competências intelectivas, analíticas, perceptivas, intuitivas, criativas, pelo fenômeno de deskilling (perda de habilidades ou competências) pelo uso crescente de novas tecnologias de IA generativa? Como evitar a dependência excessiva de respostas rápidas e fáceis a problemas complexos? Abandonaremos o processo reflexivo satisfazendo-nos integralmente com as respostas dadas pela máquina e descartando as boas perguntas?
Não pretendo dar respostas; antes, penso que é hora de formular boas perguntas. Ou provocações. Elas nos mobilizam para a ação.
Pacientes ou agentes? – that’s the question!
A IA “agêntica” substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das serventias? Transferimos a agentes (agentic IA) a realização de rotinas cada vez mais especializadas e complexas, acarretando, por uma estranha descompensação – a perda progressiva de autonomia e independência pessoais. De igual modo, à medida que nos contentamos unicamente com as respostas, abandonando o afanoso iter processual e esquecendo-nos das perguntas, acabamos por perder a própria memória.
Nos encontros de registradores e notários proliferam estandes de prestadores de serviços especializados nessa área. O impacto das novas tecnologias nas serventias se dá feito tempestade de areia no deserto. O uso de blockchain virá em substituição aos tradicionais registros imobiliários? IA aplicada à análise e qualificação registral de títulos já é realidade em alguns cartórios, bem como a extração de dados e lavratura “inteligente” de atos registrais e notariais. A máquina atribui a identidade digital por biometria e cruzamento de dados hauridos do grande lago de big data… Nasce uma profusão de aplicativos especializados na atuação e processamento de tarefas confiadas a agentes autônomos e inteligentes.
A IA “agêntica” substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das serventias?
A diminuição de tempo e o estreitamento espacial, provocados pelas infovias, promove o aumento da eficiência sistêmica, transformando o ecossistema dos cartórios. Afinal, the medium is the message.
Entretanto, tudo isso se faz a que custo humano? A aceleração digital nos desumanizará? O estado de passividade (pati) nos furtará progressivamente o agir humano (agere)?
Novas tecnologias – novo ser humano?
O tema do impacto das novas tecnologias na sociedade humana é recorrente na literatura distópica do século XX. Fiquemos num só exemplo, perturbadoramente atual: O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
O pano de fundo da ficção huxleyana é a inovação tecnológica que daria impulso, racionalidade e eficiência a processos industriais (no romance, fordistas), promovendo o consumo desenfreado e a concentração de poder nas mãos de grandes corporações que se confundem com o Estado totalitário mundial (globalismo, se preferir). Tudo é feito à custa da alienação progressiva do ser humano, que se vê entorpecido pelo consumo, lazer, sexo e por artefatos tecnológicos.
O hipermaterialismo e a saudades do mistério
Engenharia genética, eugenia, condicionamento “neopavloviano”, hipnopedia (“sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade”), supressão da curiosidade inata dos seres humanos, substituição do valor e sentido das palavras (ressignificação, se preferir) e o Soma, nome tomado das tradições védicas, que, na distopia huxleyana, já não conduz à revelação, mas à anestesia perfeita, abolindo o sofrimento sem abrir as “portas da percepção”.
“Meio grama para uma folga de meio dia, um grama para um fim de semana, dois gramas para uma viagem ao suntuoso Oriente, três para uma sombria eternidade na Lua”, dirá Huxley. “Bebo ao meu aniquilamento”… (Admirável Mundo Novo)
O mundo hedonista, embalado pelos prazeres e confortos materiais, consagraria o direito humano fundamental à felicidade, livrando o homem de suas angústias existenciais, suprimindo, de modo eficiente e eficaz – e sem efeitos colaterais -, a profunda e sentida saudade do Transcendente.
A liberdade sexual é fator coadjuvante de diluição e dispersão de tensões, agravando a alienação, a desagregação da psiquê, a fragilização, a infantilização. As sessões orgiásticas são embaladas por estimulação sexual. Na assombrosa passagem do romance em que evoca metaforicamente o ritual do sacramento, os doze partícipes, em comunhão, são conduzidos pela sacerdotisa, Morgana Rothschild (ah… fina ironia do nosso autor!) num transe hipnótico coletivo. A evocação de unidade e comunhão, provocada pelo Soma e pela estimulação sensorial, provocam o aniquilamento do indivíduo, mergulhando sua personalidade na uniformidade comportamental, reforçando o sentimento de pertencimento hipermaterialista e coletivista do Estado Mundial.
“Orgia-folia, Ford e Alegria,
Beija aqueles que amas e faz deles um só.
Rapazes e raparigas em paz se unirão!
Orgia-folia dá-nos a libertação”
(id. Ib p. 96).
Racionalidade e uniformismo – o novo capitalismo
Huxley sabe que uniformidade e liberdade são incompatíveis.
“Esses milhões de pessoas anormalmente normais […] ainda nutrem ‘a ilusão de individualidade’, mas na verdade foram em grande medida desindividualizados. Sua conformidade está se expandindo para algo como uniformidade. Mas ‘uniformidade e liberdade são incompatíveis. Uniformidade e saúde mental também são incompatíveis.'” (Retorno ao Admirável Mundo Novo, p. 28).
“O todo social […]. É apenas uma organização, uma peça da máquina social. […] Dar às organizações precedência sobre as pessoas é subordinar os fins aos meios”; (Idem, ibidem, p. 34).
Ao deitarmos um olhar atento às inovações tecnológicas que estão em curso em nossa sociedade, veremos que não estamos muito distantes de experimentar os sentifilmes (feelies) da obra huxleyana, dos jogos eletrônicos, da música sintética, da recorrência de posts e reels que se sucedem em ambientes saturados de estímulos visuais e sonoros, projetados diretamente sobre retinas desarmadas, tudo de molde a impedir o silêncio reflexivo, a meditação, a contemplação, o jazimento de intuições…
No futuro não se poderá suscitar dúvidas existenciais!
No Retorno ao Admirável Mundo Novo, do mesmo Huxley, alude-se a uma cultura midiatizada que vicia as massas pela dopamina provocada pelas media digitais. Tigrinhos, bets, caça-níqueis viciosos, pornografia, jogos sexuais infantis, sucessão estimulativa de imagens que cria dependência psicológica e fragilidade social. Tudo isso nos remete ao delírio futurista do nosso romancista
Distopia ou realidade?
As novas tecnologias descritas no livro parecem vaticinar que o futuro nos revelaria um estranho descolamento do sistema nervoso para além do corpo físico, avançando sobre os domínios da hiper-realidade. Achegando-nos, suave e progressivamente, à noosfera, esfera do pensamento (ou do conhecimento, se preferir) que empolgou autores como McLuhan (e sua “aldeia global” midiática), Teilhard de Chardin (e seu Ponto Ômega). Ingressamos nos vestíbulos de um templo que representa uma nova fase evolutiva (disruptiva, se preferir), com o predomínio de uma razão cientificista, tecnocrática, hipermaterialista, de cariz positivista. Um outro nome para isto tudo é transumanismo, se preferir.
Huxley fala de homens do futuro. Assusta-nos verificar que na plataformização dos serviços o passado se dissolve em camadas profundas do cyberespaço? Parafraseando um conhecido político, o que será esta “nuvem” abscôndita que se acha no lugar-nenhum de todos os sites? O tempo e o espaço colapsam na instantaneidade das transações eletrônicas. O apagamento do passado é induzido – já ninguém reconhece seus pais, mães, e os seres humanos divorciam-se das tradições que os ligavam à família, à frátria, à pátria. Dos escombros da tradição nasceu um estado onipresente, monolítico, um demiurgo sedutor e simbolicamente violento que embala a narrativa.
A humanização da tecnologia – a terceira via?
Entretanto, no curso da trama, o autor nos revelará um “outro mundo”, contraposto à sociedade hipertecnológica e condicionada do Estado Mundial. No final do romance, Huxley nos apresentará John, um ser humano visceralmente dividido pela origem e pela realidade vivida na Reserva Selvagem. Ele coloca em seus lábios passagens de Shakespeare que expressam a complexidade da experiência humana: amor, dor, piedade, compaixão, morte, ciúme, ambição, transcendência, ideias que ressoam como reminiscências de uma idade áurea perdida (humanidade perdida, se preferir). Com isso, Huxley busca contrastar a linguagem mecânica, redutora e repetitiva do Estado Mundial, com a prosa abonadora do dramaturgo bardo:
Oh, maravilha! Quantas criaturas belas existem aqui!
Como é bela a humanidade! Ó admirável mundo novo,
Que tem pessoas assim.
(Miranda, Ato 5, Cena 1)
As profecias foram lançadas em 1932 e, já na década de 50, revelariam-se assustadoramente verossímeis para o próprio autor. O “pesadelo da organização total […] espera por nós logo ali na esquina” dirá no Retorno ao Admirável Mundo Novo. Huxley revisitaria o cenário por ele mesmo antevisto – o “mundo civilizado” em contraste com o “mundo selvagem” (representado pela Reserva onde vive o Selvagem, John) – uma escolha binária entre totalitarismo tecnocientífico e primitivismo tribal:
“Se eu tivesse de escrever o livro novamente, ofereceria ao Selvagem a possibilidade de fugir – não para o mundo selvagem, mas para uma sociedade organizada, descentralizada e economicamente cooperativa, habitada por pessoas que não apenas aceitassem a ciência, mas também tivessem a mais elevada concepção de objetivos humanos.
(…)
Uma utopia válida deveria oferecer opções além da servidão condicionada ou da selvageria regressiva. A ausência dessa alternativa torna o mundo novo mais profético, mas menos útil.” (idem, ibidem).
Mais profético? Menos útil? Deixo ao caríssimo leitor as cogitações que o texto incomodamente suscita.
Habemus machinam.
A IA pode representar de fato um admirável mundo novo. Estaremos fadados à servidão voluntária de uma sociedade hipertecnocrática ou seremos condenados ao exílio numa reserva “selvagem”, regressiva, tecnofóbica. Haverá uma outra via? A concepção de uma terceira via seria possível?
Huxley acena que sim, e sugere temas como a descentralização, a constituição de pequenas greis, sussurra que o manto da espiritualidade deve cobrir e soldar os laços da compaixão e solidariedade humanas, subordinando a ciência à ética. Aponta para o caminho interior – a via pedregosa do autoconhecimento. Enfim, propõe o retorno ao real tangível, sem a intermediação das diáfanas lâminas da hiper-realidade que nos remetem aos domínios pavorosos dos espelhos borgianos. Uma utopia válida, dirá ele, se posta além da servidão condicionada ou da selvageria regressiva.
Enfim, leitor…
A IA já está entre nós. Adentramos os átrios de um admirável mundo novo. Que maravilhas ela há de operar? Que tesouros se acham no fim deste sedutor arco-íris?
Calma, muita calma, nesta hora. A distopia foi concebida por Huxley na década de 30 do século passado. Como ele poderia imaginar que tudo isto suscitaria as nótulas insones deste velho escriba tradicionalista quando pensa que as facilidades e a sedução das novas tecnologias podem nos levar para o interior de um labirinto?
NE: As obras de Aldous Huxley, citadas no texto, acham-se em domínio público e podem ser acessadas facilmente nas bibliotecas digitais da Internet.
Fonte: Migalhas
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